Grandes Discos
>> terça-feira, 24 de novembro de 2009
por Chico Cougo
Periodicamente, o América Macanuda vai trazer a seus leitores a seção "Grandes Discos", sempre com comentários sobre renomadas produções da indústria fonográfica sul-americana do passado e do presente. Para esta primeira edição, escolhi um álbum que completa dez anos de existência em 2010. "Marcelo Álvarez sings Gardel" (Sony Classical, 2000), é o disco ideal para os apaixonados por tango e admiradores de Carlos Gardel (1890-1935).
Este CD é o segundo na carreira do tenor argentino Marcelo Álvarez (Córdoba, 1962). Acostumado a cantar nos grandes palcos operísticos da Europa, Álvarez parece ter sido despertado pelo sentimento argentino de reverência a Gardel e conduzido a homenagear o ídolo. Depois de seu primeiro álbum ("Bel Canto", 1998), o cantor realizou aquela que, provavelmente, é a aventura mais ousada de sua carreira: resgatar o sempre perene repertório gardeliano a partir do estilo erudito.
O resultado não poderia ser mais fascinante. Sob a direção de Jorge Calandrelli e acompanhado por grande orquestra, Marcelo Álvarez presenteia seu público com treze temas que marcaram a carreira do "morocho del Abasto". A começar por Tomo y obligo, tango de 1931 que tem toda sua dramaticidade resgatada, especialmente pela desenvolta ação dos violinistas convidados (Miguel Angel Bertero e Fernando Suarez-Paz).
A seqüência é completada pelo consagrado cancioneiro da dupla Gardel/Le Pera. Em Soledad (1934), Álvarez consegue mergulhar em detalhes de originalidade, sem dispensar inovações de bom-gosto, como o famoso "repique" nas cordas cegas do violino, movimento que marcou a produção musical de outro mito tangueiro - Astor Piazzolla. Já com El día que me quieras (1935), o tenor cumpre a proeza de remontar, com toques modernos, aquele que é um dos maiores clássicos gardelianos (embora a supressão dos versos declamados, presente em quase todas as regravações, mas ausente neste disco, tenha feito falta). Por una cabeza (1935), a grande metáfora turfística da história do tango, é outro clássico que não fica de fora do álbum de Álvarez e dos arranjos de sua orquestra acompanhante. Por sua vez, Volver (1935), que se transformou em algo como um hino-ode a Gardel logo após o falecimento do cantor, também recebeu atenção especial na gravação, desta vez com um toque mais intimista.
Numa espécie de "segunda parte" do disco, ocorre o resgate de algumas peças mais antigas e também daquelas que são mencionadas com menor intensidade pelos fãs de Gardel. Do repertório mais recuado no tempo, Mano a mano (1923) me parece uma ótima escolha de Álvarez. Na gravação, expressões típicas do lunfardo portenho foram suprimidas (até porque o disco foi destinado ao mercado europeu), fato que pode ter desagradado alguns preciosistas, tanto quanto a incursão (ainda que tímida) de uma guitarra elétrica nos primeiros acordes da introdução. Cuesta abajo, mais uma canção "made in USA" por Gardel/Le Pera, também recebeu modificações singulares, à ponto de ter seu arranjo praticamente todo alterado. Nem por isso perdeu sua força e qualidade.
Já Golondrinas (1934), Melodía del arrabal (1932) e Caminito (1926) me parecem as gravações mais "normais" de "Marcelo Álvarez sings Gardel". Afora o vozeirão do tenor, que é o grande e esperado destaque da obra em geral, nada demais. E isso porque, talvez, o ponto alto da produção tenha sido reservado para o final.
A propósito, as três faixas que encerram o disco são difíceis de descrever. Volvio una noche (1935), o último tango de Gardel, é reconhecida por sua difícil interpretação, mas foi resgatada em toda sua força. O arranjo deste tango foi montado de forma gradativa. Nos versos finais, a voz do tenor e o instrumental se unem num tom apoteótico, de acordo com a carga dramática da letra. Em La cumparsita (Si supieras), o tango mais conhecido do mundo, quem rouba a cena é o bandoneonista Nestor Marconi, com quase trinta segundos de solo instrumental. Por fim, Mi Buenos Aires querido surpreende o ouvinte com o duo Gardel-Álvarez. Isso mesmo! Através de recursos de edição digital, a voz do maior astro que a Argentina já conheceu se une a de seu discípulo, numa interpretação absolutamente indescritível.
"Marcelo Álvarez sings Gardel" é um daqueles álbuns raros que consegue ser original mesmo partindo de um material repisado inúmeras vezes e por artistas diversos. Em tempos em que é cada vez mais difícil encontrarmos releituras de qualidade, este grande disco merece atenção do público tangueiro pelo resgate que faz de seu maior e jamais esquecido ídolo.
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